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Imunoterapia: a melhor arma anticâncer.

18 de fevereiro de 2020 Tratamento do Câncer

Imunoterapia: a melhor arma anticâncer.

O ano é 1891. O cirurgião William Coley acaba de perder sua primeira paciente. A adolescente de 17 anos tinha aparecido no Hospital do Câncer de Nova York com um tumor nos ossos da mão (um sarcoma). Coley não teve opção a não ser amputar o membro. Como não havia sinais aparentes de metástase – filiais do tumor em outros órgãos –, o médico supôs que a moça estava livre da doença. Dois meses depois, porém, ela morreu repentinamente: as células mutantes haviam se espalhado pelo corpo. Só estavam escondidas.


Arrasado, Coley vasculhou os prontuários do hospital atrás de casos semelhantes. Encontrou um relato escrito sete anos antes: uma imigrante italiana identificada como Zola, de 35 anos, tentou duas vezes extrair um sarcoma do tamanho de um ovo localizado embaixo da orelha esquerda. A protuberância sempre crescia de novo. Para piorar, durante a cicatrização da última das cirurgias de remoção, a pele da bochecha contraiu uma infecção chamada erisipela. Zola teve picos de febre violentos, e ficou à beira da morte.


Os médicos perceberam, porém, que a cada ataque de febre alta o sarcoma diminuía – até sumir completamente. O aumento na temperatura é um sinal de que nossas células de defesa estão em ação contra as ameaças que invadem o corpo. Ou seja: ao combater a erisipela na pele, o sistema imunológico também combateu o câncer por acidente. Impressionado, o médico percorreu os cortiços do leste de Manhattan em busca da italiana. Encontrou Zola viva e saudável, sete anos depois, em remissão completa.


Coley então transformou essa anomalia em tratamento. Injetou um coquetel de bactérias nos tumores de seus dez próximos pacientes para deixá-los doentes de propósito. Era um método bruto, e nada ético. Muitos acabavam mortos pela infecção antes de serem mortos pelo câncer. Mas às vezes dava certo: um homem com sarcoma inoperável, já espalhado pelos tecidos da pélvis e da bexiga, se recuperou plenamente – só morreria 26 anos depois, de ataque cardíaco. Seus glóbulos brancos, sozinhos, deram conta do recado. Após essa primeira leva, Coley se aperfeiçoou: percebeu que usar pedaços de bactérias mortas poderia surtir o mesmo efeito sem oferecer perigo.


Os relatos de Coley foram debatidos entre os médicos na época, mas a notícia não chegou ao público leigo, pois o câncer, no século 19, não era envolto pelo tabu que o cerca hoje. Foi só depois que os tumores se tornaram o inimigo público nº 1: entre 1900 e 1940, uma revolução no saneamento básico, nas vacinas e na nutrição diminuiu muito o número de pessoas que morriam graças a doenças como diarreia, tuberculose e varíola. A população pobre passou a alcançar idades mais avançadas – e o câncer começou a matar pessoas que antes morreriam de outras causas.


Na primeira metade do século 20, o câncer saltou da oitava para a segunda posição do ranking de causas de morte mais comuns – onde permanece, atrás apenas de doenças cardiovasculares. Quatro em cada dez pessoas terão um tumor em algum ponto da vida. Em 2018, o câncer matou 9,6 milhões de pessoas, 70% delas em países de renda baixa ou média. 22% dessas mortes estão associadas ao tabagismo; outros 22%, a hepatite ou infecção pelo papilomavírus humano (HPV). Os casos de câncer devem aumentar 70% até 2038, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), e apenas um quarto dos países pobres oferece tratamento na rede pública.


A palavra “câncer” é genérica; define uma coleção de aproximadamente 160 tipos de tumores. O que eles têm em comum é o fato de se construírem a partir da multiplicação descontrolada de alguma célula. O gatilho são mutações em um ou mais genes dessa célula. Essas mutações podem ser herdadas dos pais ou desencadeadas por agentes externos: cigarro, álcool, infecção por determinados vírus etc.


Por um século, combatemos o câncer por meio da quimioterapia e da radioterapia. Envenenar e torrar o tumor é uma estratégia eficaz em muitos casos, mas vem acompanhada de efeitos colaterais que acabam com o bem-estar dos pacientes.


Na busca por alternativas mais amenas, a ideia de Coley foi redescoberta pelos médicos a partir da década de 1980 e ganhou um nome cabeludo: imunoterapia, uma classe de tratamentos que ensinam o sistema imunológico a combater o câncer de forma eficaz. As imunoterapias são promissoras e têm pouquíssimos efeitos colaterais, mas ainda são limitadas: só se conhecem métodos eficazes contra alguns tipos de câncer, como melanoma (câncer de pele), linfoma e de pulmão.


Muitas drogas imunoterápicas ainda estão em estágio experimental, e as que chegaram ao mercado não são baratas. Uma ampola de Yervoy, um imunoterápico aprovado no Brasil pela Anvisa em 2012 e usado para conter metástase de câncer de pele, custa até R$ 18 mil, e são necessárias no mínimo quatro doses.

Os resultados, porém, impressionam tanto quanto o preço. Mas, antes de entender como os cientistas manipulam o sistema imune a nosso favor, é preciso aprender como ele funciona.



• O sistema imune:


Ele é dividido em dois grupos de células: as inatas e as adaptativas. As inatas são as primeiras a entrar em ação quando surge uma ameaça – os soldados rasos, que seguram a bronca enquanto o corpo monta uma estratégia. As adaptativas formam a tropa de elite.


Mas vamos começar com as inatas. As mais conhecidas são os macrófagos. “Macrófago” significa, ao pé da letra, “comilão”. É a junção das palavras gregas makrós (“grande”) e phagein (“comer”). Eles são como o Pac-Man – bolinhas flexíveis de 0,02 mm capazes de englobar e digerir qualquer coisa: micróbios, células mortas do próprio corpo, células potencialmente cancerígenas e até substâncias inorgânicas. O pigmento de uma tatuagem passa o dia sendo engolido e regurgitado por macrófagos.


O segredo dessa versatilidade está em certas proteínas que eles carregam, chamadas receptores do tipo Toll. Essas proteínas são como buracos de fechadura. Se rola um encaixe, os macrófagos são ativados. A chave correta, nesse caso, são pedacinhos de molécula que muitos vírus, bactérias e outras ameaças exibem, mas que não existem normalmente em nós. Por exemplo: os vírus têm RNA de fita dupla, humanos não têm. Bactérias têm uma proteína chamada flagelina, humanos não têm.


É um sistema esperto, mas simples. Como um antivírus gratuito que protege o PC de algo que você pode pegar baixando um filme pirata, mas não daria conta de um hacker do governo russo. E algumas bactérias são hackers mesmo: a da pneumonia, por exemplo, é protegida por uma cápsula que impede a deglutição pelo macrófago; já a da tuberculose se deixa deglutir de propósito, e então arma acampamento no interior dele.


Há outras células além dos macrófagos no sistema inato [veja infográfico abaixo]. As mais famosas aí são as células dendríticas. Como os macrófagos, elas são capazes de fagocitar as ameaças. Mas com um bônus: guardam pedacinhos dessas ameaças para apresentá-los a seus superiores. Os superiores, no caso, são células chamadas linfócitos.


Os linfócitos são as células do outro sistema imune, o adaptativo. Ao contrário dos macrófagos e afins, que usam os receptores versáteis do tipo Toll, cada linfócito tem apenas um receptor, capaz de detectar um único antígeno. Você tem milhões de linfócitos aí dentro. E não existem dois iguais.


O objetivo dessa aleatoriedade é o seguinte: se cada um deles tem um buraco de fechadura especializado em uma chave diferente, são grandes as chances de que, independentemente de qual ameaça adentre o seu organismo, haja um linfócito ideal para tentar combatê-la, por mais extraterrestre que ela seja.


Os linfócitos T CD4, chamados auxiliares, são os mais importantes. Quando uma célula dendrítica engole uma ameaça – seja ela um vírus, bactéria ou câncer –, ela vai até os linfócitos e apresenta um pedacinho da ameaça a eles, um por um, até encontrar um linfócito com o encaixe ideal para iniciar o combate. Quando esse linfócito magia é encontrado, ele começa a se multiplicar e forma um exército de clones. Além disso, ele corre para ativar dois de seus funcionários, os linfócitos B e T CD8.


Os T CD8 são especialistas em venenos. Eles procuram células cancerígenas ou células que foram sequestradas por vírus e as destroem utilizando substâncias chamadas perforinas e granzimas. Os linfócitos B, por sua vez, atacam usando os famosos anticorpos. Os anticorpos são proteínas especializadas em grudar em algum pedacinho do invasor. São liberados no campo de batalha em grandes quantidades, para grudar em tudo que aparecer.


Eles podem, por exemplo, se conectar às proteínas da superfície de um vírus. É o equivalente a algemá-lo: de “mãos” atadas, ele se torna incapaz de penetrar na membrana de uma célula e sequestrá-la. Anticorpos auxiliam a resposta imune dessa e de outras formas, ainda que não sejam diretamente responsáveis por eliminar ameaças.



• A imunoterapia:


Aqui surge uma questão: o sistema imune é um aparato de detecção de coisas estranhas, e existem linfócitos para detectar qualquer coisa. Então, por que ele não detecta o câncer?


A resposta é que, em geral, ele detecta: “O sistema imune não é cego aos tumores”, diz José Barbuto, professor de imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. “De fato, ele está pegando a maior parte deles neste exato momento. A questão é que alguns poucos escapam e conseguem crescer.” (No livro Corpo, Bill Bryson escreve: “Todos os dias, estima-se, de uma a cinco células suas se tornam cancerígenas, e seu sistema imune as captura e extermina.”)

O câncer também tem muito mais facilidade em passar despercebido que um agente externo. Um motivo é que ele cresce devagar. Primeiro, uma célula se multiplica e sofre uma mutação. Depois, se divide mais um pouco e sofre outra mutação. Não é o suficiente para alertar as células de defesa, que acabam se acostumando àquela anomalia por não considerá-la perigosa o suficiente.


Quando o tumor começa a incomodar, ele já ensinou ao corpo que não deve ser combatido. Acaba interpretado como uma doença crônica, que exige apenas uma leve vigilância. As imunoterapias são todas táticas para despertar as defesas dormentes.


A modalidade mais popular de imunoterapia surgiu na década de 1990, com o trabalho simultâneo de dois pesquisadores, um no Japão, outro nos EUA. Em 1992, Tasuku Honjo, da Universidade de Kyoto, descobriu uma proteína chamada PD-1 na superfície dos linfócitos. A PD-1 é um botão que interrompe a ação da célula quando ela não é mais necessária. Essa é uma das rédeas que, normalmente, evitam que o linfócito perca a noção e comece a atacar órgãos e tecidos inocentes. Em casos de câncer, porém, o PD-1 acaba impedindo uma ação eficaz do glóbulo branco mesmo quando ele encontra um câncer.


Honjo bolou uma droga que pudesse grudar no botão PD-1 e escondê-lo, impedindo que fosse pressionado. Como a tampa que se coloca sobre um botão de alarme de incêndio. Assim, o linfócito ficaria livre para atacar o tumor até eliminá-lo. Essa droga era justamente o melhor tipo de molécula para grudar em alguma coisa: um anticorpo. Era uma inversão inédita. Em vez de usar um anticorpo para aderir ao tumor, Honjo criou um anticorpo capaz de causar um curto-circuito no sistema imune, ativando-o.


Dois anos depois, no Natal de 1994, James Allison, da Universidade da Califórnia em Berkeley, teve o mesmo insight. O grupo de biólogos do qual ele fazia parte estudava como um outro tipo de freio de linfócito, a proteína CTLA-4, poderia ser acionado de propósito em situações em que o sistema imune ataca o corpo que deveria defender (caso de uma doença chamada artrite reumatoide). Allison imaginou que, se bolasse um jeito de fazer o contrário – sabotar o freio que estudava em vez de incentivá-lo –, chegaria a uma droga contra o câncer. Deu certo praticamente de primeira.


Allison e Honjo ganharam o Nobel de Medicina em 2018, e os bloqueadores de PD-1 e CTLA-4 se tornaram algumas das drogas imunoterápicas mais populares do mundo. Como já dissemos aqui, são especialmente eficazes no tratamento de melanomas e, não menos importante, são melhores do que qualquer outra terapia na tarefa de eliminar metástases (lembre-se: as filiais do tumor que brotam em outros órgãos). Isso acontece porque os linfócitos, uma vez acionados, caçam os mutantes onde quer que eles se escondam. O nome técnico desse tipo de imunoterápico é “inibidor de checkpoint”, já que ele bloqueia a “checagem” que o linfócito faria para saber se deve atacar ou não.


Entre os tratados com Ipilimumab – o bloqueador de CTLA-4 –, a taxa de pacientes de melanoma com metástase que sobrevivem mais de cinco anos após o diagnóstico é algo entre 18% e 20% (Os números variam dentro de uma margem de erro conforme o artigo científico consultado). Com Nivolumab – o bloqueador de PD-1 –, 29% a 39%. Com os dois combinados, de 50% a 60%. É um resultado surpreendente: até o lançamento dos inibidores de checkpoint, só 5% dos pacientes em estado grave (estágio 4) sobreviviam por esse tempo.



• O preço:


Tirar um remédio do papel é demorado. O Opdivo só foi aprovado pela FDA – o órgão americano equivalente à Anvisa – em 2017. O Yervoy chegou ao mercado um pouco antes, em 2011. A demora não é à toa: as empresas do setor farmacêutico realizam uma grande quantidade de testes para garantir a eficácia e a segurança da droga. Em média, de cada 10 mil moléculas pesquisadas, só uma vira remédio.


Tanto o Opdivo quanto o Yervoy, hoje, são propriedade intelectual da Bristol-Myers Squibb (BMS). “Depois que começam os testes clínicos, com seres humanos, a universidade em geral não é capaz de financiá-los por conta própria e precisa se aliar a um patrocinador do setor privado”, explica Roger Miyake, diretor de Acesso na BMS no Brasil.


Foi o que aconteceu com Allison, que na época era pesquisador e docente da Universidade Texas A&M. Para realizar os teste clínicos do Yervoy, ele fez uma parceria com uma startup de biotecnologia chamada Medarex, que em 2009 foi adquirida pela BMS.


Essa jornada se reflete no preço. Nos EUA, de acordo com a BMS, o preço de uma ampola de Opdivo de 240 mg, que deve ser injetada a cada duas semanas, equivale a R$ 27 mil. Quem precisa da combinação Opdivo e Yervoy, cujo tratamento completo exige no mínimo quatro injeções, vai desembolsar algo entre R$ 90 mil e R$ 165 mil por ampola.


Tratar câncer, diga-se, nunca foi tão caro: em 1965, o preço médio de uma droga anticâncer recém-aprovada pela FDA era R$ 400 – em valores de hoje, corrigidos pela inflação. Em 1980, pouco mais de R$ 4 mil. Agora, praticamente não há limites (como veremos adiante).


No Brasil, um órgão da Anvisa chamado CMed regula o preço dos medicamentos, mas ele ainda é proibitivo. O Yervoy custa algo entre R$ 14,5 mil e R$ 18 mil a dose, conforme o ICMS de cada Estado. Sob esse valor, ele foi submetido à avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), que determina se o custo-benefício de uma droga justifica sua inclusão no SUS. Foi negado. O caso do Opdivo, por sua vez, encontra-se em consulta pública na internet. Qualquer cidadão pode opinar sobre a implantação da terapia no sistema público.


A advogada Carla Gil Fernandes, em tratamento há um ano e dois meses com o Opdivo, estava com melanoma metastático em estágio 4 quando começou. Teve remissão completa, confirmada por exames de imagem a cada três meses. É um exemplo da eficácia do remédio. Mas também da dificuldade de acessá-lo:

“O SUS não fornece e eu estava sem plano de saúde. Minha única opção era judicializar o pedido do remédio para o Estado, e assim o fiz”. Como o Estado é responsável por zelar pela saúde dos cidadãos, é possível conseguir por meio da abertura de um processo diversas drogas que o SUS não disponibiliza. Mas essa só é uma alternativa para quem tem dinheiro para pagar um advogado (ou, como no caso de Carla, para quem já é um).



• As alternativas:


Uma opção para o governo é pechinchar com as farmacêuticas argumentando que o volume justificaria um preço menor por dose. O Brasil é o quinto país mais populoso, 600 mil casos de câncer são registrados por ano. 150 milhões de pessoas dependem do SUS. Mesmo que o sistema público não dê tanto lucro quanto os convênios, o número de ampolas é tão alto que o desconto pode compensar.


Desenvolver medicamentos nacionais é outro caminho. É o que faz a ReceptaBio, uma startup fundada em 2006 por um ex-diretor científico da Fapesp, José Fernando Perez. Eles estão realizando testes clínicos de fase 2 para duas moléculas que têm a mesma função que o Yervoy e o Opdivo da BMS, mas que sairão por uma fração do preço.


Ambas já estão patenteadas, e espera-se que passem por aprovação acelerada pelas agências reguladoras (Anvisa e FDA), isto é: que possam chegar às prateleiras antes da conclusão dos ensaios clínicos de fase 3. “O fato de nós termos tanto o CTLA-4 quanto o PD-1 é muito importante”, diz Perez. “A combinação é mais eficaz que qualquer um dos dois sozinhos.” A aprovação deve vir até 2021.


A ReceptaBio faz parcerias com universidades e centros de pesquisa, que podem contar com bolsas de agências de fomento estaduais e federais. Assim, uma parcela do investimento é custeada com recursos públicos. Outra peculiaridade é que os testes estão sendo realizados não com melanomas, que são o alvo típico dos inibidores de checkpoint, mas em mulheres com câncer de colo de útero: um tumor comum em países em desenvolvimento, mas raro na Europa e nos EUA por causa da vacinação contra o vírus HPV. “Câncer de colo de útero não é uma indicação atraente para as multinacionais”, diz Sonia Dainesi, diretora médica da ReceptaBio.


Participar de testes como esses pode ser uma ótima forma de testar uma terapia inovadora gratuitamente. As universidades públicas e os principais centros de pesquisa em saúde brasileiros estão constantemente criando e aperfeiçoando drogas contra diferentes tipos de tumor, e precisam de voluntários para aplicá-las.

Além disso, nada impede as grandes empresas do setor farmacêutico de realizarem seus ensaios clínicos por aqui. O problema é a burocracia: o governo brasileiro impõe regulações severas ao processo de aprovação de uma terapia, o que atrasa as iniciativas nacionais e afugenta as internacionais. É muito mais barato e rápido realizar testes na Europa, ou na China, do que aqui.


“O governo precisa incentivar estudos clínicos, agilizar a aprovação deles. Principalmente em um cenário de privação de recursos, em que essa é uma alternativa”, diz Andreia Melo, chefe da divisão de pesquisa clínica e desenvolvimento tecnológico do Instituto Nacional do Câncer.



• O futuro:


Nos parágrafos anteriores, debatemos uma única modalidade de imunoterapia. Embora os inibidores de checkpoint como o Yervoy e o Opdivo estejam em evidência desde o anúncio do Nobel de 2018, eles são só a ponta do iceberg.


Uma aposta recente são os linfócitos T com receptores de antígeno quiméricos, mais conhecidos como células CAR-T. O resumo da ópera é: coletar linfócitos na corrente sanguínea do paciente, levá-los para o laboratório e instalar neles um gene. Esse gene equipa o linfócito com uma proteína capaz de aderir ao tumor. Assim, cria-se um linfócito customizado, para ser reinserido na pessoa doente.


O problema, claro, é o preço. Um tratamento de células CAR-T contra câncer no sangue chamado Kymriah e vendido pela Novartis sai por US$ 475 mil. Em bom português, R$ 2 milhões. Uma versão brasileira da técnica está em desenvolvimento na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e pode sair por R$ 150 mil. Ela foi aplicada pela primeira vez em outubro de 2019. Vinte dias depois, o primeiro paciente, um homem de 62 anos com linfoma, estava essencialmente livre da doença.


Uma das imunoterapias mais sofisticadas que existem, curiosamente, é um retorno à ideia original de Coley: infectar o tumor de propósito. O Imlygic, fabricado pela empresa de biotecnologia Amgen, é um vírus da herpes criado e modificado em laboratório. Esse vírus hackeado não consegue invadir células saudáveis, mas é capaz de parasitar as cancerígenas.


Ao ser injetado no tumor, ele sequestra o maquinário das células para criar cópias de si mesmo (como todo vírus faz). Ao final, a célula explode, liberando bebês vírus na vizinhança. Isso é bom não só porque a célula em si foi morta, mas porque o recheio dela foi solto pelo corpo. Tal cenário aumenta a chance de o sistema imunológico detectar uma molécula anômala inédita, capaz de convencê-lo a iniciar uma resposta.


Enquanto isso, no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em São Paulo, capital, José Barbuto desenvolve há anos uma outra terapia, baseada em células dendríticas. Lembre-se: a função delas é ativar os linfócitos, exibindo um pedacinho da ameaça na molécula MHC II. Se elas estão desligadas, o contra–ataque não começa. E é comum o tumor convencer as dendríticas de que está tudo bem.


Para contornar o problema, Barbuto extrai dendríticas saudáveis do sangue de um doador, mistura com células do tumor do paciente e dá um choque de mil volts. O choque perturba a membrana das células e faz com que elas se fundam, criando quimeras microscópicas: células híbridas de dois núcleos que são metade o câncer de um paciente e metade a célula dendrítica de uma pessoa saudável. Essa bizarrice vive pouco, mas o suficiente para apresentar o tumor aos linfócitos, iniciando a reação na marra. É como fazer ligação direta em um carro.


Esse tipo de tratamento às vezes é chamado de vacina, ainda que não seja uma vacina na acepção corriqueira do termo (vacinas treinam o sistema imune para evitar que alguém contraia uma doença, já a vacina contra o câncer trata o paciente após o diagnóstico). Há vários tipos experimentais de vacina. É possível, por exemplo, produzir em laboratório pedacinhos de proteína que sejam bons sósias dos antígenos que o câncer fabrica. Assim, seu sistema imune faz uma “simulação” antes de partir para a batalha.


Um dia é possível que imunoterapias assim – bem como tantas outras saindo do papel em laboratórios do mundo todo – entrem para o catálogo de uma empresa farmacêutica. Mas essa sempre será uma longa novela. Por trás da história de cada paciente, há a história de cada comprimido. Eles nascem em universidades, passam por startups e testes clínicos… Se forem reprovados, o processo começa todo de novo.


Demorado? Sem dúvida. Mas depende da perspectiva. Há apenas 150 anos, sangrar os pacientes na navalha era tido como método sério para curar a maior parte das doenças. A medicina avança devagar em relação à duração de uma vida. Mas o conhecimento é cumulativo: nós temos hoje o que as vidas de ontem deixaram para nós. E as vidas de amanhã terão o que deixarmos para elas.



Leia também o artigo original em: https://bit.ly/2uXxNTV



Esta reportagem foi entregue como trabalho de conclusão de curso do repórter Bruno Vaiano na Escola de Comunicações e Artes da USP. Agradecemos os professores Luciano Guimarães e Wagner Souza e Silva e o redator-chefe da revista Saúde, Diogo Sponchiato, por participar da banca e colaborar com a edição do texto.


Fonte: Revista Super Interessante. "Imunoterapia: a melhor arma anticâncer". Texto: Bruno Vaiano. Design: Juliana Krauss. Ilustrações: Otávio Silveira. Edição Alexandre Versignassi. Publicado sob licença da Revista Super Interessante.

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